29/03/09

História das Invasões Francesas em Arrifana

"Na madrugada de 17 de Abril de 1809 o exército francês cerca e toma de assalto a pacata povoação de Arrifana. Quem oferece resistência ou ensaia a fuga é morto a tiro, à coronhada ou trespassado pelos sabres e baionetas dos soldados de Napoleão. Grande parte da população procura refúgio no interior da igreja que, no entanto, acaba por se revelar uma verdadeira ratoeira: os franceses obrigarão todos os homens válidos a saírem do templo, seleccionando em seguida um em cada cinco.

Os “quintados” (assim ficaram conhecidos) são de seguida fuzilados pelos invasores. Quando estes partem deixam atrás de si a povoação em chamas e, empilhados no local do massacre, dispersos por campos e caminhos de tentativa de fuga e pendurados de cabeça para baixo em várias árvores, cerca de 70 mortos.

A forte resistência popular ao exército francês invasor foi um dos factores mais característicos da Guerra Peninsular. As populações portuguesas e espanholas foram, com efeito, responsáveis por constantes e hostis acções em relação às tropas napoleónicas. E se essa oposição foi muitas das vezes “passiva” e materializada no abandono das povoações e propriedades e na destruição dos bens que, de algum modo, pudessem servir ao inimigo, não é menos verdade que esta resistência assumiu crescente e correntemente facetas bélicas.

Multiplicavam-se, na realidade, as emboscadas e pequenas acções militares que, tanto ou mais do que fragilizar o ocupante pelas baixas que provocavam, o desmoralizavam dado o constante clima de medo pelo inesperado em que as tropas viviam. De resto, vários estudiosos têm defendido que foi com a Guerra Peninsular que a expressão “guerrilla” (pequena guerra) adquiriu o significado de resistência popular contra um invasor ou inimigo do povo pelo qual é hoje universalmente reconhecida.

Muitas vezes, contudo, as emboscadas sobre o exército francês acabaram por o motivar para duras acções punitivas de vingança sobre as populações. Foi o que aconteceu em Arrifana, durante a 2ª Invasão Francesa, em 17 de Abril de 1809.

Tudo começou poucos dias antes quando o tenente-coronel Lameth, ajudante de campo do General Soult que comandava esta invasão e desde 29 de Março ocupara o Porto, parte desta cidade, acompanhado por outros cavaleiros franceses, levando consigo ordens de Soult para as tropas estacionadas junto ao Vouga.

Não obstante a sua reconhecida competência, em Riba-Ul, Oliveira de Azemeis, este oficial francês e os seus companheiros caíram numa emboscada de paisanos encabeçada pelo chefe da guerrilha de Arrifana Bernardo António Barbosa da Cunha, um dos mais importantes morgados da região que, na sequência da invasão francesa, havia juntado os seus criados e os mancebos vizinhos, dera-lhes instrução militar, e organizara assim um grupo de guerrilheiros que repetidamente emboscava as tropas inimigas que aqui passavam para a frente do Vouga ou regressavam ao Porto.

Face à resistência oferecida por Lameth é o próprio Barbosa da Cunha que o mata a tiro de espingarda. Dois outros franceses morrem também na sequência deste embate, mas os restantes conseguem escapar e, com eles, segue a denúncia dos autores da emboscada.
A vingança do general Soult não se fará esperar. E assim, na madrugada de 12 de Abril, as tropas napoleónicas, comandadas pelo general Thomiers, escreverão mais uma página negra da história das invasões francesas.

Cercada e tomada de assalto a pacata povoação de Arrifana, local de origem da maioria dos elementos da guerrilha de Barbosa da Cunha (que consegue, no entanto escapar, juntamente com a maioria dos seus homens), assistir-se-á em seguida a uma bárbara carnificina. Quem resiste ou procura fugir é morto a tiro, à coronhada ou trespassado pelos sabres e pelas baionetas dos invasores. São poucos, no entanto, estes mortos, se comparados com o número de homens que morreriam poucas horas depois.

O cenário do que se passou é dantesco mas narra-se em poucas palavras: porque para aí foram empurrados pelas tropas ou porque aí procuraram refúgio, grande parte da população concentra-se no interior da igreja que, rapidamente, se transforma numa verdadeira prisão, de onde é impossível fugir. Os franceses obrigarão então todos os homens válidos a saírem do templo, seleccionando em seguida um em cada cinco. Os “quintados” (assim ficaram conhecidos) são levados para o campo da Buciqueira, entre a Arrifana e S. João da Madeira, e de seguida fuzilados.

Lado a lado tombam pais e filhos, irmãos e, pelo menos, 32 homens casados e 12 viúvos. E porque cinco dos infelizes sobreviveram ao fuzilamento, foram mortos posteriormente no lugar onde a guerrilha havia abatido o oficial francês Lameth e deixados, durante vários dias, pendurados de cabeça para baixo em cinco carvalhos que aí existiam.

Foram pois, muito poucos, os que tiveram a sorte do chapeleiro Gaspar que, embora fizesse parte dos “quintados”, não foi atingido no fuzilamento deixando-se, no entanto, cair entre os mortos ensanguentados e, com as mãos atadas, esperar pacientemente pela noite para fugir.

Não se sabe correctamente quantas pessoas morreram nesse dia. Um estudo recente (GUIMARÃES e outros 1997) indica de uma forma clara que só na freguesia da Arrifana os Registos Paroquiais referem 67 óbitos na sequência da intervenção francesa. A estes haverá, no entanto, que acrescentar outros que, feridos de morte, acabam por se refugiar e falecer noutras paróquias ou o caso de algumas vítimas que, por serem de outras povoações vizinhas, foram transportadas pelos seus familiares para as suas terras onde foram sepultadas e registado o seu óbito.

Embora reconheça que, em resultado do desnorte que terá atingido as populações e os seus párocos durante os dias seguintes, se detectem alguns registos de óbito repetidos, Saúl Valente havia salientado já em 1937 que entre as vítimas do fuzilamento se encontram, além dos homens da Arrifana, 2 de Mosteirô, 1 da Vila da Feira e 4 de S. João da Madeira. De resto, sabe-se que oito das vítimas foram enterradas nesta última localidade.

Curiosa é a expressão utilizada pelo pároco de Arrifana nos seus registos. Querendo deixar bem marcada a memória da matança substituiu, nos já referidos 67 óbitos desse dia, o corrente “faleceu da vida presente” por um repetido “morto de repente pelos franceses”, que o mesmo é dizer fuzilados ou, como poucos anos depois (1822) lembraria umas alminhas ainda existentes no centro da Arrifana: “arcabusados pelos franceses”.


Monumento
No Largo da Guerra Peninsular (na parte de cima da Feira dos 4) situa-se o Monumento aos Mártires de Arrifana: um obelisco granítico, com mais de oito metros de altura, inaugurado em 1914 e da autoria de Domingos Maia, um artista local. O escultor José de Oliveira Ferreira, autor do famoso monumento dedicado à Guerra Peninsular no Campo Grande, em Lisboa, é o autor do painel em bronze que representa o fuzilamento de 17 de Abril de 1809, visível numa das faces do monumento, e aí colocado em 1935. É classificado como um Monumento Militar.

Perto do Monumento situam-se as alminhas da Arrifana, datadas de 1822. No seu interior um retábulo naif retrata a cena do fuzilamento e ostenta a seguinte legenda: “PELAS ALMAS DOS NOSSOS IRMÃOS PATRICIOS/ QUE MORRERAM NESTE SITIO ARCABUSADOS PELOS FRAN/ CESES NO ANO DE 1809 P.N.A. M.”. Trata-se de um segundo retábulo, feito já no século XX, que substituiu e procurou copiar o original que, bastante degradado pelo passar dos anos, se encontra na Biblioteca dos Bombeiros Voluntários da Arrifana.


Livro
Gonçalves GUIMARÃES, Sérgio COELHO, Felicidade FERREIRA - “Os Mártires de Arrifana. Memória da Guerra Peninsular”. Arrifana: Junta de Freguesia, 1997, 127 p."


Fonte: Joel CLETO e Suzana FARO- Massacre em Arrifana, Feira. Mortos de repente pelos franceses. O Comércio do Porto. Revista Domingo, Porto, 23 de Janeiro 2000, p.21-22.

Retirado de http://joelcleto.no.sapo.pt/textos/Comercio/MassacreemArrifana.htm/